Definição de personalidade e sua apresentação patológica, quando é chamada de transtorno de personalidade. Texto baseado em aula de atualização para profissionais de saúde mental sobre o diagnóstico dimensional da personalidade.
Autoria: Nícolas A. C Braga (CRM MG 73167)
No senso comum, o transtorno de personalidade é um indicativo de mau-caratismo e é usado, frequentemente, de forma midiática e sensacionalista, seja no cinema ou no jornalismo, não condizente, porém, com o comportamento da maioria das pessoas que sofrem desse transtorno, que apresentam estresse elevado e prejuízos significativos (acadêmicos, financeiros e interpessoais).
Atenção especial deve ser dada ao tema, já que pessoas com transtorno de personalidade são responsáveis por parcela considerável da demanda por serviços de saúde mental. Estima-se que 9,1% da população tenha este diagnóstico, dos quais, mais de dois terços também apresentam outro transtorno mental simultaneamente, em especial, depressão, ansiedade, transtorno alimentar e dependência de álcool e drogas.
Por que somos diferentes?
O comportamento humano é uma característica evolutivamente selecionada que se desenvolve com a formação gradual das comunidades, proporcionando mecanismos de gerenciamento do convívio social. Para isso, se torna necessário o desenvolvimento da noção de identidade que define o indivíduo em um grupo, permitindo a aproximação e a intimidade, além de depender do engajamento social e altruísmo. Desta forma, são respondidas as indagações: quem sou? Quem não sou? Como nos aproximar? O que penso sobre os outros? O que pensam sobre mim?
Os comportamentos também devem atender às necessidades naturais, sem trazer prejuízo às necessidades sociais e individuais. Entre as premissas, estão evitar o perigo e buscar o prazer. Sendo culturalmente determinadas, podem se apresentar, respectivamente, por guerras e casamentos.
Compreendendo a diversidade de comportamentos evolutivamente selecionados, a individualidade corresponde aos traços de personalidade, que são, basicamente, as qualidades pessoais que se traduzem nos vícios e virtudes. Também determinam as vontades, que devem ser saciadas por respostas adaptativas que auxiliam a alcançar o resultado de maneira mais adequada. Desta forma, pode ser aprendida ao longo da vida, portanto, maleável e compensatória.
Além da resposta comportamental, a personalidade é caracterizada pela identidade, forjada pela narrativa de vida, conferindo unidade, propósito e significado. Deve ser avaliado de acordo com a resposta cultural ou normas sociais, justificando as diferenças entre grupos e a apresentação distinta entre os gêneros.
Portanto, a personalidade refere-se às diferenças individuais quanto aos padrões de pensamento, sentimento e comportamento. Sua avaliação reflete uma tendência geral desses padrões (como as máscaras em um teatro), não sendo possível predizer respostas diante de uma situação específica, diferindo-se, dessa maneira, do julgamento moral antecipado.
O Transtorno de Personalidade
Diferentemente da personalidade normal, o transtorno de personalidade é inflexível e mal adaptativo, que causa prejuízo funcional ou sofrimento subjetivo, que destoa da cultura do indivíduo. Os padrões disfuncionais se manifestam em áreas da cognição, afetividade, interpessoalidade e controle de impulsos, não se limitando à manifestação ou consequência de outro transtorno mental, iniciando-se na adolescência ou juventude e sendo estável ao longo da vida.
Os transtornos de personalidade diferem da simples imoralidade porque ocorrem em variadas situações, mesmo em tentativa de resistência do indivíduo. Ainda assim, os comportamentos são conscientes, motivo pelo qual a pessoa pode ser responsabilizada por seus atos.
Como a Personalidade é avaliada?
Por não se conhecerem a partir de uma atividade reflexiva, muitas pessoas buscam explicações simplistas sobre “quem sou?” e o “por que sou?”. Muitas vezes, essa busca é realizada forma irresponsável para justificar ações como consequências de forças sobrenaturais. Essas classificações abrangentes, além de serem errôneas, invertem a relação de causa-efeito, ajustando a pessoa ao “diagnóstico”, sendo frequentemente falhas.
Como exemplo, há a avaliação por meio da astrologia, em que ocorre o efeito da validação subjetiva ou da validação pessoal, que consiste na aceitação de descrições de personalidade vagas e gerais como exatas e verdadeiras, portando, enviesadas.
A alternativa proposta consiste no entendimento dos transtornos mentais como uma variação da normalidade, portanto, uma classificação dimensional, em que, ao invés de se valorizar o desfecho final, valoriza-se a característica que levaria a tal consequência. No caso do transtorno de personalidade, a atenção é dada aos traços de personalidade.
Os traços de personalidade demonstram os estilos pessoais, porém não traduzem o indivíduo como um todo, que também tem memórias, representações, objetivos e contextos. Os traços são adjetivos, que podem compreender polos opostos de uma mesma característica, tal como ser alto ou ser baixo se referem à estatura. Entende-se que, quando mais extremo for um traço de personalidade, maior a chance de ser patológico, ainda que não seja reflexo da gravidade do transtorno.
Entre as características avaliadas, os traços podem se agrupar em domínios de maior importância, sendo eles:
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Neuroticismo: ansiedade, hostilidade, depressão, autoconsciência, impulsividade.
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Extroversão: calorosidade, gregariedade, atividade, busca de entusiasmo, emoções positivas.
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Amabilidade: confiança, simplicidade, altruísmo, conformidade, modéstia, empatia.
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Conscienciosidade: competência, ordem, senso de dever, autodisciplina, deliberação.
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Abertura à Experiência: fantasia, estética, sentimentos, ações, ideias, valores.
Quais as consequências?
Um indivíduo com funcionamento ótimo tem um mundo psicológico complexo, plenamente elaborado e bem integrado que inclui um autoconceito predominantemente positivo, volitivo e adaptativo. Também tem uma vida emocional rica, ampla e apropriadamente regulada, além de ser capaz de se comportar como um membro produtivo da sociedade com relações interpessoais recíprocas e satisfatórias.
O nível de funcionamento prediz a presença de um transtorno de personalidade, assim como sua gravidade. Sendo assim, além de ser dimensional em sua qualidade, a avaliação diagnóstica também é dimensional em funcionalidade, uma vez que demonstra os prejuízos devido à personalidade, considerando o meio em que é expresso. Se apresenta enquanto funcionalidade individual (identidade e autodirecionamento) e interpessoal (empatia e intimidade):
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Identidade: vivência de si como único, com fronteiras claras entre si mesmo e os outros; estabilidade da autoestima e precisão da autoavaliação; capacidade para, e habilidade de regular, várias experiências emocionais.
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Autodirecionamento: busca de objetivos de curto prazo e de vida coerentes e significativos; utilização de padrões internos de comportamento construtivos e pró-sociais; capacidade de autorrefletir produtivamente.
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Empatia: compreensão e apreciação das experiências e motivações das outras pessoas; tolerância em relação a perspectivas divergentes; entendimento dos efeitos do próprio comportamento sobre os outros.
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Intimidade: profundidade e duração do vínculo com outras pessoas; desejo e capacidade de proximidade; respeito mútuo refletido no comportamento interpessoal.
O que fazer?
Pode se referir aos padrões pessoais que conferem individualidade, o tratamento do transtorno de personalidade não busca mudar o indivíduo. Da mesma forma, o tratamento não consiste em prevenir respostas ou impedir ações.
A proposta do tratamento, especialmente a psicoterapia, é garantir que o paciente esteja consciente de seus padrões e utilizá-los de maneira adaptativa. Portanto, o foco é valer-se dos traços de personalidade para corrigir o seu funcionamento adequado.
Embora vistos frequentemente como difícil manejo clínico, especial atenção tem sido dada para os transtornos de personalidade. Entre as abordagens disponíveis, destacam-se as cognitivo-comportamentais, especialmente, as chamadas “terapias de terceira onda” (TCC para transtornos de personalidade, Terapia comportamental dialética, Terapia dos esquemas).
A abordagem é desafiadora tanto para o profissional da saúde mental quanto para o próprio paciente, que devem estabelecer vínculos de confiança mútua e engajamento no processo.
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